Conheça dois exercícios para você "juntar os cacos" e voltar a caminhar
Hora do Café
Edição N.º 15 - Abril de 2022
Se tem uma coisa que o Fique Bem defende é que os ritmos pessoais sejam respeitados. Assim, desde o início do ano, a nossa Hora do Café, que é o nosso papo mensal com um profissional da saúde mental, tem respeitado uma sugestão de cronograma saudável para o início deste semestre: falamos em planejamento real em janeiro, encaramos a inconstância que 2022 nos representava em fevereiro, conversamos sobre o processo de ressocialização em março e agora, em abril, queremos falar sobre o “voltar para o eixo”. Mas que eixo se tornou esse? Assim como acontece com a Terra, será que temos vivido um processo de deslocamento do nosso eixo?
Para conversar sobre o assunto, chamamos a super didática e cuidadosa Larissa Zeggio, psicóloga clínica, mestre e doutora em Neurociências, para falar com a gente. Fundadora do R-Club, a primeira rede social positiva do Brasil, Larissa é amiga de longa data do Fique Bem. Afinal, quem não se lembra dela naquela live que fizemos no ano passado, sobre saúde mental na pandemia?
"Sentir o desconfortável é o primeiro passo", diz Larissa
“Voltar para o eixo não significa necessariamente voltar para o conhecido. Afinal, como diz o ditado, ninguém entra no mesmo rio duas vezes: quando entramos novamente em um rio, nem o rio é o mesmo, nem nós permanecemos iguais”, introduz ela. “Por mais que estejamos retornando às atividades que conhecíamos, as atividades não são mais as mesmas — o mundo virtual entrou com força em nossas rotinas, inclusive na escola — e nós não somos mais os mesmos — passamos por uma pandemia, muitos vivenciaram amigos e familiares doentes, outros tantos perderam pessoas queridas, tivemos que nos isolar e lidar com sobrecargas de todos os tipos, mudamos nossa forma de ver os outros e nós mesmos. Essas experiências deixam marcas, as vezes parecem até quebrar pedaços em nós”, continua.
Para ajudar a lidar com essas marcas, a psicóloga cita a antiga técnica japonesa chamada Kintsugi. “Kintsugi significa, literalmente, ‘emendar com ouro’. Quando as cerâmicas mais valiosas se quebravam, ao invés de tentar disfarçar as marcas ao juntar os pedaços, os restauradores usavam laca com ouro para deixar em evidência as emendas. Na concepção deles, valorizar as cicatrizes e o desgaste das coisas revelava uma nova beleza tornando a peça única. Assim como nos tornamos únicos por nossas dores e experiências”, compara a profissional.
“A filosofia por trás desse processo de restauração é bastante similar à que sustenta a abordagem psicológica da Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT). A noção de ‘aceitação’ dessa abordagem extremamente efetiva da psicologia consiste em não lutar o tempo todo contra os sentimentos desconfortáveis que surgem, como ansiedade, raiva, frustração, e sim deixá-los surgir, observá-los e deixá-los passar, desenvolvendo uma ação mais consciente em relação a eles”, explica Larissa. “A ideia de que não podemos sofrer por um minuto sequer e que, se estamos sofrendo, há algo de errado conosco, nos leva muitas vezes a buscar saídas prejudiciais como comportamentos de risco, uso de álcool e drogas para mascarar sentimentos, e até uma positividade tóxica com otimismo pouco realista”, continua.
“Dar atenção e sentir as emoções desconfortáveis é um primeiro passo para adotar uma atitude mais alinhada aos nossos valores e aprender com a vida sem entrar em esquiva ou desespero. Como na metáfora do Kintsugi, ver as falhas e aceitá-las é o que permite expô-las com ouro”, afirma a psicóloga.
Diante dessa metáfora, nossa psicóloga convidada deixou conosco a tarefa de apresentar a você, querido leitor, dois exercícios que podem te auxiliar nesse processo de aceitar as marcas que foram criadas durante a pandemia e ressaltar seus valores com ouro a partir delas. Que tal praticá-los? Confira a seguir:
Exercício 1: Cicatrizes que vivi
Use alguns minutos para relembrar os momentos difíceis que você vivenciou na pandemia. Pode ter sido em relação à sua saúde, à saúde de alguém próximo, à dificuldade em dar conta da rotina da casa, conflitos com os filhos, companheiro, em atuar como professora… Escreva em um papel essas dificuldades.
Escolha uma delas e tente identificar a emoção que estava presente [pode ser medo, raiva, tristeza…]. Não tente fugir dos sentimentos, os sinta por alguns momentos. Pense na função que essa emoção tinha — não apenas te fazer se sentir mal — mas na sabedoria biológica que faz termos medo para nos proteger de algo ameaçador, sentirmos raiva para lutar contra algo que não achamos justo, ficarmos tristes para lembrar de dar valor a algo que perdemos.
Se for difícil encontrar essa função para essa dificuldade recente, tente lembrar de situações diferentes em sua vida onde essa mesma emoção te ajudou a lidar com algo importante. Essa é sua ferida, pode ser que ela esteja um pouco aberta ainda. Dê atenção para ela.
Exercício 2: Laca com ouro — buscando os valores para juntar os cacos
Pensando na emoção e na situação difícil do exercício anterior, tente avaliar porque ela foi dolorosa. O que essa dor estava tentando brilhar de valor? Por exemplo, ter brigado com um filho constantemente por ele ficar no celular o dia todo, se sentir impotente e triste com isso, está te mostrando o que? Pode ser que esteja mostrando/brilhando o valor que você tem na conexão com sua família.
A conexão com a família, nesse exemplo, não é um objetivo, não é uma meta que a gente simplesmente alcança e está satisfeito pra sempre. A conexão com a família é um processo, um caminho a andar e cultivar.
Reflita: quais ações em direção a esse caminho (de conexão com a família) você gostaria de fazer? Como aproveitar esse processo? Quais ações você gostaria de cultivar? Por outro lado, que ações você percebe que te afastam dessa direção (pelo exemplo, o que te afasta da conexão com a família)? Brigar com o filho? Se afundar no trabalho? Quais dessas ações você acha possível deixar de fazer, ou fazer com menos frequência?
E aí, professor, acha que seria possível fazer esses exercícios? Lembrando sempre que, se estiver muito difícil sentir essas emoções desagradáveis e elas te fizeram paralisar ao invés de buscar por ações cotidianas alinhadas aos seus valores, consulte um profissional. Tais atividades não têm a intenção de substituir o auxílio de um profissional de saúde mental, ok?
“Esses exercícios são um pequeno passo para aceitarmos que não podemos controlar tudo na vida e que evitar sentir emoções desagradáveis só nos afasta de percebermos os valores que queremos usar para nortear nossa vida”, afirma Larissa. “É apenas a partir da observação das nossas emoções desconfortáveis e da valorização das nossas cicatrizes que teremos compromisso com as ações no dia a dia. Junte seus cacos com ouro e bom retorno a escola na era pós-pandêmica!”, conclui.