Em
julho...
Quem é você? Note que não perguntei o seu nome ou a sua profissão. Sei que a pergunta parece simples e, assim como eu, você já deve tê-la respondido milhares de vezes, sem refletir a respeito da sutil profundidade dessa questão. Afinal, você se conhece o suficiente para dizer por aí quem é você ou como você vive? Você domina o nosso vocabulário, confia em mim o bastante e consegue acessar com sensibilidade as palavras ideais para descrever quem, de fato, é você? Complexo, não é?
Responder a essa questão demanda autoconhecimento e muita sabedoria. É preciso olhar para si, para fora, se entender como sujeito de uma sociedade e compreender essa sociedade. É preciso relacionar corpo, mente e, como um todo, saber como você se relaciona com o outro. É necessária uma consciência pessoal, social e sistêmica, que compreende o conceito de interdependência. Não somos sozinhos no mundo. Somos coletivo.
Neste mês, o Fique Bem se pautou nessa dimensão do ser e, a partir de dois encontros incríveis com convidados fantásticos — um pautado no equilíbrio emocional (olhar para si) e outro pautado em diversidade (olhar para o outro) — buscamos terminar o mês muito mais conscientes de quem realmente somos e de qual o nosso papel na sociedade. Os assuntos foram amplos, mas as reflexões profundas.
Além das lives, ainda na mesma pegada, publicamos um vídeo sobre o que é o Fique Bem, numa tentativa de nos reapresentarmos, de nos reconhecermos, e de começarmos um novo diálogo com você, professor, que se encontra nessa rede tão querida. Por fim, nossos colunistas trouxeram conteúdos exclusivos, com questões de tirar qualquer um da zona de conforto. Pode apostar!
Prepare-se para uma leitura de si mesmo, para um encontro com o seu querer e para uma aula sobre a sociedade que vai ensinar muito mais sobre você mesmo do que qualquer um pode imaginar. Te convido a tentar responder, não para mim mas para si, ao final da leitura: Afinal, quem é você?
Um beijo
Professora Fique Bem
A importância de falar sobre as Diversidades
Se falar sobre diversidade é falar da população LGBT, das mulheres, das pessoas racializadas, dos cadeirantes, dos idosos, das pessoas acima do peso… O que está subentendido? Será que, com esse pensamento do que é o “diferente”, não estamos, justamente, apontando um “normal” e reforçando um padrão? Você já parou para pensar que talvez o próprio conceito de diversidade carregue uma ideia de exclusão?
LIVE: DIVERSIDADE NA ESCOLA
Tratar desse assunto, que é amplo, complexo e muito mais desafiador do que parece, foi a nossa missão na primeira Live Fique Bem do mês de julho. Para isso, nosso querido Eduardo Pacífico se encontrou com duas convidadas muito especiais: a internacionalista e educadora Amanda Brito, e a diretora de Educação do Campo, Direitos Humanos e Diversidade da SEDF, Ruth Meyre.
“Diversidade é uma invenção. O racismo foi inventado, mas foi inventado pelo branco, pelo europeu. E, a partir dessa noção, a gente vai entender como a diversidade também foi inventada. Esse conceito só existe porque existe um padrão. Existe aquele que é o correto. Então, tudo o que não é o padrão é a diversidade”, provocou Ruth logo no início do encontro. “É preciso falar de diversidade sem hierarquizar. O diverso não é aquilo que é diferente do padrão”, apontou.
Amanda ainda reforçou que “não é qualitativo ser diferente”. Diante disso, levantou sim a necessidade de se falar não só de uma diversidade, mas de todas, no plural, seja em relação à etnia, ao gênero, à orientação sexual, à religião, à cultura, às condições socioeconômicas, à origem, à idade… É diversidade que não acaba mais! “Falar de diversidades não deveria ser uma pauta ideológica. Falar de diversidades é falar de sociedade”, refletiu a internacionalista.
Durante uma hora e 12 minutos de conversa, as nossas convidadas deram uma aula e, mesmo que pincelando as diversas facetas das diversidades, devido à complexidade do tema, Amanda e Ruth fizeram todos refletirem. “É um assunto muito complexo e a gente não vai dar conta de vencer”, afirmou Ruth, ao incluir na roda pensamentos sobre cotas e até a descriminalização do aborto — pois tem raça, CEP e cor. Para ela, não basta pensar em diversidade apenas nas portas de entrada dos lugares, é necessário entrar no conceito de equidade e trabalhar em uma integração de todos os grupos à sociedade.
Por fim, como levar esse assunto para a escola? É preciso estudar. Como Amanda bem lembrou, é preciso ter inteligência social e, assim, mais chances de construir um país melhor, baseado no respeito, na tolerância e na compaixão. Ufa! Pronto para dar o play? Assista ao vídeo completo do encontro, pegue um caderno e vamos em frente, pois todos nós temos muito a aprender!
O equilíbrio emocional é um ato social
Permanecer 100% do tempo feliz, motivado, bem-humorado e tranquilo lhe parece algo real? Se antes já era improvável, manter essa tal “estabilidade emocional” em tempos de pandemia tem sido impossível. Mas engana-se quem pensa que é disso que se trata o conceito de equilíbrio emocional.
LIVE: CULTIVANDO O EQUILÍBRIO EMOCIONAL
“Equilíbrio emocional não é virar um ‘alecrim dourado’. É muito mais um movimento do que um estágio que se chega na vida”, conta o nosso convidado Fred Barão, psicólogo especialista em Treinamento & Desenvolvimento pela Griffith University, da Austrália.
Na segunda Live Fique Bem do mês, Fred nos presenteou com a sua presença, sua voz calma e sua energia inspiradora para falar sobre como podemos cultivar o equilíbrio emocional dentro de nós. “Eu gosto muito da imagem daquele monociclo, daquela bicicleta de uma roda só”, compara o psicólogo.
Segundo o convidado, esse equilíbrio está muito ligado à pergunta: “a partir do que o mundo me oferece, eu vou ser ativo ou reativo?”. Para ele, a reatividade nada mais é que a perda de escolha, a terceirização do afeto. O equilíbrio emocional é um passo para a liberdade, a partir do momento em que se relaciona com o conceito de autonomia — o que é bem diferente do individualismo, como ele explica durante o vídeo.
Viajado, Fred Barão lembra de ensinamentos que recebeu durante suas visitas a outros países e os reproduz na live, como bem diz, fazendo o papel de “papagaio de pirata”. Numa linguagem simples e acessível porém, traduz seu vasto conhecimento, como, por exemplo, ao falar sobre depressão e ansiedade a partir de um provérbio. “Se, na minha vida, eu vivo muito no futuro, ou muito no passado, eu faço xixi no presente”, brinca. A ideia da frase é lembrar que, apesar de sermos criados em uma falsa busca pela estabilidade, podemos ter paz no coração, repousando na impermanência do presente.
O encontrou durou apenas uma hora, mas foi repleto de frases marcantes. Assista ao vídeo completo e busque você também cultivar o seu equilíbrio emocional — seja pela vontade, pela necessidade ou pela urgência, o que te motivar. O equilíbrio emocional é um ato social, não individual. Logo, o seu equilíbrio é para o bem de todos, e passa pelo conceito de controle, de consideração, de empatia e de interdependência.
Depois do vídeo, venha aqui nos comentários responder: onde está o seu “quero” neste momento? Estamos curiosíssimos para trocar ideias com vocês.
Selo
de prof
para prof
Conheça esse espaço de escuta, troca e incentivo, que cuida de quem cuida
Nesta edição da Revista Fique Bem, estamos completando o nosso primeiro semestre! A revista surgiu diante da nossa vontade de estreitar a comunicação com essa rede de professores tão querida, que só cresce a cada dia.
Contudo, se você chegou aqui há pouco tempo, talvez você não saiba, mas o Fique Bem é um projeto que começou há um ano.
VOCÊ SABE COMO O FIQUE BEM SURGIU?
Preocupados com a saúde mental dos profissionais da educação em meio à pandemia da Covid-19, o Fique Bem nasceu para ser uma rede. Em 2020, nossas conversas se iniciaram por temas relacionados ao autocuidado e à pandemia. Agora, em 2021, nosso objetivo é o de aprofundar os assuntos e dialogar com profissionais experientes, tanto em educação quanto em saúde mental, ampliando nossa atuação.
O Fique Bem é um projeto para o professor, pelo professor e com o professor. Somos um espaço de escuta e cuidado para esses profissionais que trazem esperança para futuro melhor.
O terceiro vídeo publicado no mês de julho foi uma nova apresentação, uma lembrança do porquê surgimos e do para onde vamos. Espalhe para seus amigos e vamos aumentar essa rede. Fique bem, professora! Fique bem, professor!
Colunas
FEMINISMO
Para a promoção de uma educação emancipadora, a escola deve propor um Currículo Integrado
Gina Vieira Pontes
Ceilandense, professora da educação básica no DF há 29 anos. Mestra em Linguística, especialista em Desenvolvimento Humano, Educação e Inclusão Escolar e em EAD. Autora do Projeto Mulheres Inspiradoras.
Nas últimas colunas, nós apresentamos algumas reflexões sobre a importância de construirmos projetos- político- pedagógicos que se comprometam com uma educação que se se dê em e para os direitos humanos. A pergunta diante desta proposição é: como? Como a escola pode promover um fazer pedagógico antissexista, antirracista e fazer isso superando a falsa dicotomia entre “ou eu ensino os conteúdos ou eu trabalho temas ligados aos direitos humanos”?
O primeiro passo a dar é compreender a diferença entre o Currículo Coleção e o Currículo Integrado. O professor Francisco Thiago Silva (2020) menciona que o termo “Currículo Coleção”, foi elaborado por Berstein (1977) para se referir a uma abordagem curricular em que os conteúdos a serem ensinados na escola estão separados e delimitados entre si. Para os autores, se queremos propor uma abordagem curricular que permita o desenvolvimento integral dos estudantes, precisamos de um currículo em que os diversos conteúdos não façam caminhos distintos, mas, um currículo em que os conteúdos a serem ensinados mantém uma relação entre si. Currículo Integrado, portanto, é aquele em que os diferentes componentes curriculares dialogam entre si, a partir de uma abordagem interdisciplinar, e de um trabalho pedagógico coletivo, em que os docentes de uma unidade de ensino não atuam como ilhas, mas em permanente diálogo entre si, com o território, com os sujeitos envolvidos e alcançados pela Organização do Trabalho Pedagógico.
Para a materialização de um Currículo Integrado é muito importante compreender o que são eixos estruturantes e eixos transversais. Eixo estruturante é “o elemento nuclear que dá base e sentido ao currículo integrado, em que as disciplinas e áreas, num movimento que não é estático, mas dinâmico, promovem a verdadeira construção coletiva do conhecimento, com o auxílio dos eixos transversais” (Silva, 2020, p.58). Já os eixos se traduzem em estratégias que favorecem “uma organização curricular mais integrada, focando temas ou conteúdos atuais e relevantes socialmente e que, em regra geral, são deixados à margem do processo educacional” (SANTOMÉ, 1998, Currículo em Movimento).
Quando a escola define os eixos transversais com os quais pretende trabalhar, ela deve fazê-lo observando o que aponta a Pedagogia Histórico- Crítica, que sugere: “o estudo dos conteúdos curriculares tomará a prática social dos estudantes como elemento para a problematização diária na escola e sala de aula e se sustentará na mediação necessária entre os sujeitos, por meio da linguagem que revela os signos e sentidos culturais” (Currículo em Movimento, 2014, p.32).
Portanto, as perguntas que o corpo docente da escola precisa fazer é: ao observar as práticas sociais dos estudantes, que aspectos relacionados à diversidade e aos direitos humanos são identificados? Quais são os índices da comunidade no tocante à violência contra a mulher, por exemplo? Na escola há incidência de comportamentos relacionados ao racismo e ao machismo? Os livros didáticos adotados pela escola, ainda privilegiam a presença masculina na construção da história do Brasil e da humanidade? Quais são as representações sociais de grupos historicamente excluídos, trazidas nestes livros? Ainda trazem povos tradicionais, indígenas, africanos e negros ou representados de forma folclorizada e estereotipada?
As respostas a estas perguntas permitirão a cada unidade de ensino pensar em eixos transversais que atuarão como a argamassa que vai conectar os conteúdos a serem trabalhados. Neste sentido, é importante destacar que, para construir e consolidar um trabalho pedagógico alinhado à ideia de Currículo Integrado e educação em e para os direitos humanos, é fundamental compreender que não há receitas ou manuais, não há caminhos pré-estabelecidos a seguir. O que há é o entendimento de que para cumprir o objetivo de garantir o direito às aprendizagens, a educação não pode relegar a segundo plano temas que são caros à consolidação da escola como espaço para a formação dos valores plurais e republicanos. Tão importante quanto garantir que os estudantes aprendam os conteúdos é garantir que eles o façam compreendendo a própria realidade, sabendo lê-la criticamente. Conectar o ensino dos conteúdos à realidade é atribuir sentido a esses conteúdos, e melhor ainda, é tornar as aprendizagens mais significativas.
Referências bibliográficas:
SILVA, Francisco Thiago. Currículo Integrado, eixo estruturante e interdisciplinaridade: uma proposta para a formação inicial dos pedagogos. Brasília: Ed. Kiron, 2020.
DISTRITO FEDERAL. Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal. Currículo em Movimento da Educação Básica: Cadernos dos Pressupostos Teóricos. Brasília: SEEDF, 2013.
RACISMO
A representatividade negra e os protestos antirracistas nas Olimpíadas
Lorena Bárbara Santos Costa
Professora da rede pública municipal dos municípios de Salvador e Lauro de Freitas (BA). Pedagoga pela UFOP e Pós-graduada em Psicopedagogia e em Pobreza e Desigualdade Social. Mestranda em Educação de Jovens e Adultos- UNEB.
O debate acerca do racismo durante as Olímpiadas de Tóquio tem sido muito importante para evidenciar a força da negritude nos mais diferentes esportes. Vale destacar que, durante muito tempo, pessoas negras não podiam participar do evento, devido ao fato que os jogos desportivos eram exclusivos da classe privilegiada e dominante.
O primeiro negro a ser campeão olímpico foi Jonh Taylor, atleta norte-americano, vencedor dos 400 metros rasos em 1908 em Londres. Já a primeira mulher negra campeã olímpica foi a norte-americana Alice Coachman, em 1948, no salto em altura feminino também em Londres.
No Brasil, também foram os primeiros medalhistas olímpicos negros nas suas modalidades esportivas o atleta paulista Adhemar Ferreira da Silva, ouro em Helsinque em 1952, o pugilista Servílio de Oliveira, medalha de Bronze em Londres em 1968, o atleta Joaquim Cruz, medalha de ouro em 1984 em Los Angeles, o nadador baiano Edvaldo Valério em 2000, bronze em Sidney, a judoca Rafaela Silva, medalha de ouro em 2016 nas Olímpiadas do Rio.
Passados 152 anos desde os primeiros jogos olímpicos modernos em 1896, a presença das pessoas negras nos esportes tem sido cada vez maior. Porém, ainda faltam muitos investimentos para que essas pessoas acessem os jogos desportivos considerados elitistas como hipismo, esgrima, tênis, natação ou iatismo.
Alguns atos antirracistas marcaram as olímpiadas em diferentes momentos. Em 1968, os atletas americanos Tommie Smith e Jonh Carlos, vencedores olímpicos do atletismo nas Olimpíadas do México, ergueram as mãos com os punhos cerrados, ao subirem no pódio, usando luvas pretas, em um protesto contra o racismo. O símbolo era uma linguagem do movimento Black Power na época.
Em 2021, em Tóquio, as seleções femininas de futebol do Chile, EUA, Grã-Bretanha, Suécia e Nova Zelândia se ajoelharam no campo antes do início das partidas. O gesto utilizado é um símbolo antirracista que se popularizou após a morte de George Floyd em Minneapolis nos EUA, em maio de 2020 - morto pelo policial branco Derek Chauvin, que se ajoelhou em seu pescoço por mais de nove minutos durante uma abordagem policial.
Nas Olímpiadas de Tóquio, atletas como as ginastas negras Rebeca Andrade e Simone Biles, se destacaram nas mídias e redes sociais. Simone Biles deu um show de exemplo ao desistir de continuar na disputa olímpica, em prol do respeito a sua saúde mental e levanta um importante debate mundial sobre até quando devemos extrapolar os nossos limites.
A vitória de Rebeca Andrade, além de nos encher de orgulho por ser a primeira mulher (e negra) a ganhar uma medalha para a ginástica olímpica brasileira, abre - para meninas que, assim como ela, são de origem humilde, de periferia, criada por mãe solo, da classe popular, negra - a possibilidade de sonhar e acreditar que é possível vencer, desde que se tenha oportunidades através das políticas públicas e financiamentos como o programa bolsa atleta para dar continuidade na vida de atleta profissional. A escolha da música “Baile de Favela”, do MC João, para apresentação da ginasta, também crava, de forma simbólica no peito dos racistas preconceituosos, que a favela tem força, identidade, ritmo, dança, estilo, garra e muita cultura.
Outro destaque é o pugilista negro Abner Teixeira, de 24 anos, que já garantiu uma medalha que será disputada nos próximos dias e também a pugilista Bia Ferreira, já nas quartas de finais. Até lá, vamos torcer pelos nossos atletas brasileiros e pelo fim do racismo em nossa sociedade.
Referências bibliográficas:
DA MATA, R. Digressão: A Fábula das Três Raças, ou o Problema do Racismo à Brasileira. IN DA MATA. Relativizando: uma Introdução á Antropologia Social. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.
SOUZA, Neusa. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Graal, 1983.
PEDAGOGIA DO ENCANTO
Um mistério, muitas intenções
Flávia Pereira Lima
Formada em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Viçosa e doutora em Recursos Naturais do Cerrado pela Universidade Estadual de Goiás. É professora no Centro de Ensino e Pesquisa Aplicada à Educação da Universidade Federal de Goiás. Seu maior desejo: que suas alunas e seus alunos compreendam a beleza de ler e explicar o mundo por meio do conhecimento científico.
“Dona Augusta, uma funcionária da escola sempre assídua e pontual, faltou ao trabalho. O que aconteceu? Se tem mistério, vamos investigar!”
A atividade O mistério de Dona Augusta (acesse aqui) foi a forma que elaborei para que as meninas e meninos compreendessem o conceito de hipótese. Nela, o primeiro passo é elaborar possíveis explicações sem nenhuma informação de referência. As mais variadas respostas, muitas delas trágicas, aparecem (ela morreu, o carro furou o pneu, ela ficou doente etc.). O próximo passo é elaborar explicações a partir de informações da rotina da funcionária e de acontecimentos na cidade. É interessante notar como as explicações vão sendo moldadas pelas informações fornecidas.
Finalmente, é o momento de cada aluno e aluna lançar mão da explicação que mais acredita. Logo depois, bate à porta uma colega do trabalho trazendo o recado escrito da Dona Augusta (tudo previamente combinado). Ela faltara ao trabalho porque estava com dengue. Escuto o alvoroço daqueles que investiram nessa resposta e o muxoxo dos que não. Nesse momento faço a seguinte pergunta “Sua hipótese foi confirmada?” Essa é a primeira vez que a palavra “hipótese” surge na atividade e na aula. Além disso, não questiono sobre acerto e sim sobre a confirmação da hipótese.
Vamos destrinchar as intencionalidades por trás dessa atividade:
i) Por que investir tempo numa atividade ao invés de explicar o conceito de hipótese?
Porque dessa forma o aluno se envolve ativamente e entende o papel de se construir uma explicação como uma etapa para se resolver um mistério. Assim, a aprendizagem avança da conceituação para a compreensão.
ii) Por que iniciar elaborando explicações sem nenhuma informação?
Para que possam registar com liberdade as explicações, sem nenhum tipo de cerceamento. É importante que compreendam esse tipo de exercício de liberdade. Mas isso também gera um termo de comparação que reforça, no próximo passo, o valor das sugestões construídas baseado nas evidências observadas.
iii) Por que elaborar explicações a partir de informações/evidências observadas?
Para que percebam que a coleta de dados nos ajuda a explicar os mistérios (e, futuramente, os fenômenos). Coletar informações/evidências é necessário para se resolver um mistério/problema. Isso também reforça o conceito de que a solução não cai magicamente nas mãos: ela é fruto do raciocínio e análise.
iv) Por que do recado trazido pela colega do trabalho?
Porque a fantasia também faz parte da aula, tornando-a mais divertida e interessante. As crianças adoram quando eu leio o recado da Dona Augusta. Olha aí o encantamento sendo feito! (A coluna chama-se Pedagogia do Encanto porque essa que vos escreve defende que as aulas devem ser emocionantes, porque aprender é bom demais!)
A próxima fase da atividade é destinada à reflexão e sistematização. Assim que o burburinho da revelação diminui, refletimos se de fato a explicação pode ser etiquetada como certa ou errada, dado que foi elaborada a partir das determinadas informações disponíveis. Construo com a turma a noção de que as possíveis explicações, chamadas a partir desse ponto de hipóteses, são elaboradas com o conhecimento que possuímos num determinado momento. Quanto mais conhecimento possuirmos, maior a chance de a explicação ser mais próxima do real. E mais: à medida que vamos aprendendo, novas hipóteses podem ser elaboradas. E claro, vale consultar o dicionário para sistematizar o conceito de hipótese.
E dessa forma o conceito de hipótese é operacionalizado e se torna rotineiro nas aulas de Ciências. É bonito ver a hipótese entrando na aula e, dia após dia, se tornando mais completa em suas dimensões de liberdade e o respeito.
Mas aí veio a pandemia. As atividades passaram a ser remotas e sem interação com os alunos, nem mesmo virtual. Sai de cena o mistério da Dona Augusta e entram os casos, pequenas histórias também repletas de intencionalidade pedagógica (acesse aqui).
Por trás de uma hipótese, muitas informações. Por trás de uma atividade, muitas intenções. E refletir sobre o que que queremos atingir com cada ação proposta em sala de aula é um dos gostosos desafios da nossa profissão.
COMPAIXÃO NA ESCOLA
Quantas mãos são necessárias para acender a luz da sua casa?
Eduardo Pacifico
Fundador e Diretor da ONG Gaia+. Ecólogo, mestre e doutor em Ciências Ambientais, criou e realizou projetos de habilidades socioemocionais com milhares de crianças e professores em todo o Brasil.
Valentin Conde
Coordenador de projetos no Instituto Sidarta, professor de práticas contemplativas para a infância, Pedagogo formado pela PUC-SP e mestre em ciências da religião com ênfase em estudos budistas pela Fo Guang University de Taiwan. Pós-graduado em Gestão Emocional nas Organizações pelo Instituto de Ensino e Pesquisa do Hospital Albert Einstein.
Quantas mãos são necessárias para acender a luz da sua casa? Se respondermos a essa pergunta sem reflexão, a resposta pode parecer óbvia: Oras! Uma única mão... aquela que aperta o botão do interruptor. O que não percebemos é que nossas respostas estão inseridas num contexto maior de uma cultura que supervaloriza valores como o individualismo. Aprendemos desde cedo que a independência é o auge das nossas conquistas. Nas grandes cidades, isso fica ainda mais claro quando pensamos no tipo de moradia mais comum: o apartamento. Essa ideia de viver “apartado” dos outros, de forma separada e independente, é bastante forte nas grandes cidades. Essa pode ser, de fato, uma ideia grandiosa, mas será possível alcançar essa tão famigerada independência?
Bom, vamos começar por uma investigação bem simples. Você lembra o que comeu no café da manhã hoje? Pão? Suco? Café? Quais desses itens foram produzidos por você? Lembre-se: não estamos falando de espremer laranjas ou passar cafezinho. Queremos saber se você realmente produziu esses produtos. Com certeza a resposta é não. Outra pergunta rápida: O que você está vestindo agora? Calças? Um vestido? Será que você fabricou algum desses itens? Novamente, a resposta deve ser negativa. Veja só! A partir dessa rápida investigação vamos, aos poucos, desconstruindo a ideia de uma vida apartada uns dos outros. Então quer dizer que somos dependentes de tudo e de todos? Essa pode ser uma ideia bastante paralisante também.
E se pudéssemos mudar nossa forma de enxergar essa situação? Ao invés de nos sentirmos dependentes podemos cultivar uma sensação de interdependência. Ou seja, fazemos parte de uma rede de bondade e gentileza que apoia nossas necessidades e da mesma maneira que recebemos esse apoio também podemos apoiar os outros. Essa noção é muito comum em algumas comunidades originárias, por exemplo na ideia de “Eu sou porque nós somos” (Ubuntu), do povo Ngúni da África do Sul. Se pudermos pensar dessa forma, fazer parte dessa rede passa a ser uma experiência fantástica!
Numa perspectiva mais macro, se olharmos para a humanidade como um todo, nossos grandes avanços não foram fruto do trabalho de uma pessoa ou outra, mas sim da colaboração e dos esforços coletivos. Em seu livro Sapiens: uma breve história da humanidade, Yuval Noah Harari diz que os humanos chegaram no estágio atual de desenvolvimento pois foram capazes de cooperar em grandes grupos e de forma dinâmica. Não deveríamos ser capazes de valorizar mais essa habilidade?
Além disso, os grandes desafios do século XXI vão exigir uma compreensão cada vez mais apurada da nossa interdependência. Quando compreendemos que as coisas não surgem sem um contexto, que tudo afeta é afetado por outras coisas, nos sentiremos menos sozinhos nessa jornada.
Quando conseguimos incorporar esse tipo de noção, podemos ajudar os estudantes nesse sentido. O divulgador científico Daniel Goleman e o pensador sistêmico Peter Senge compartilharam seus anseios por uma educação que inclua a interdependência nos currículos escolares em seu livro O Foco Triplo. Segundo eles, a interdependência diz respeito à “análise da dinâmica de que: quando eu faço isso, a consequência é esta, e, a partir disso, como uso essa percepção para mudar o sistema para melhor.” Não é apenas sobre desenvolver a mera compreensão de como funcionam os sistemas, mas sobre relacionar esse conhecimento à forma como cuidamos de nós mesmos e do nosso grande lar, o planeta Terra.
Vamos fazer um experimento juntos? Pense em um objeto importante para você. Eu escolhi “livro”, mas você pode escolher o que quiser. Escreva o nome do objeto no meio de uma folha em branco. Agora coloque em volta todos os objetos e pessoas necessários para que esse objeto importante possa existir. No meu caso, alguns exemplos são: autor, editor, revisor, diagramador, papel, tinta, impressora, computador e internet. Agora podemos ligar objetos e pessoas que são necessários para esses itens anteriores existirem. Por exemplo, para termos papel precisamos de: água, terra, sol, madeira, fábrica, trabalhadores. E assim podemos seguir... E advinha onde esse exercício vai nos levar? Para o infinito e além! Faça o teste e convide seus estudantes para fazer o mesmo!
E aí? Quantas mãos são necessárias para acender a luz da sua casa? Depois desse papo, será que sua resposta mudou? Talvez possamos dizer que são incontáveis mãos!
E sabe o que é mais bonito? Todas essas mãos pertencem a indivíduos únicos, diferentes entre si e muito importantes. Não tem nenhum exatamente igual ao outro. Mas todos esses indivíduos, mesmo sendo diferentes, têm um desejo comum: atingir a felicidade e evitar o sofrimento.
Façamos votos de viver essa interdependência de forma encantadora e mágica, sempre!