Teko Porã: a filosofia do bem viver na sabedoria guarani
Caneta Vermelha
Edição N.º 18 - Julho de 2022
Em algumas oportunidades, aqui na Revista Fique Bem, já falamos sobre o conceito do Ubuntu — a ideia do “eu sou porque nós somos”, originária do povo Ngúni da África do Sul. Com a recente (e tardia) maior valorização da cultura africana no nosso país, esse conceito vem pautando, nos últimos meses, diversas conversas, conteúdos e mesas de discussão que pontuam, pelo Brasil, a noção da interdependência. No entanto, o que muita gente não sabe é que a sabedoria indígena, dos povos ameríndios que aqui habitam, também possui um conceito que conversa com a ideia de que todos somos interligados, o Teko Porã.
Teko Porã é um termo em guarani que significa, literalmente, o “belo caminho”, ou o “bem viver”. Essa filosofia, que não se limita ao ambiente andino e amazônico, parte da cosmologia e do modo de vida indígena. Para o povo guarani, o Teko Porã apresenta-se como uma oportunidade para construir coletivamente novas formas de vida. “Esse termo é muito usado ultimamente nas palestras, nos textos, nos vídeos, em ações de guaranis, em um trabalho de mediação, no sentido de falar sobre a cultura guarani. Trata-se de uma tentativa de despertar o juruá [branco, não indígena] para entender que esse mundo, do jeito que está, está todo errado”, comenta Jerá Guarani, que aceitou conversar sobre o assunto com a nossa reportagem.
Jerá - cuja pronúncia do nome é ‘Dirá’ - é liderança guarani mbiá, na aldeia Kalipety, das terras indígenas Tenondé Porã, localizadas em Parelheiros e em Marsilac, no extremo sul da cidade de São Paulo. Ela é a primeira mulher a integrar a liderança guarani no território. Formada em Pedagogia pela Universidade de São Paulo (USP), Jerá está há mais de dez anos à frente da luta pela demarcação das terras de seu povo.
“O Teko Porã é uma tentativa de dizer para os não-indígenas que os indígenas não são superiores a ninguém. Mas, de fato, nós indígenas nos mantemos no estado que vivemos até hoje que é o de, não só aceitar, mas gostar de viver dessa forma: no mato, na terra, com a lama, com o pó, na natureza, nas nascentes, com os bichos, com as cobras, com tudo que tem nele, que tudo isso é conectado”, afirma a liderança guarani.
“A gente já estava aqui antes do juruá chegar e, depois dele chegar, a gente viu a destruição que se fez, por conta do modelo de vida que o juruá acha que é legal, que faz sentido, que é construtivo… Então, a gente vive uma destruição muito grande para bancar esse modelo de vida, que adoece muita gente, que mata muito bicho, que está desequilibrando a vida planetária de um modo geral”, critica Jerá. “Por outro lado, os indígenas que tiveram o primeiro contato com essa cultura do bem viver, como é meu próprio povo, a gente se mantém na mesma cultura. Não tem guarani proprietário do agronegócio, destruindo terra, envolvido nessa ideia de riqueza. Então, esse termo do Teko Porã, vai um pouco nessa linha de despertar o juruá para essa reflexão”, diz.
Segundo Jerá, o respeito pela natureza parte também de um lugar de conexão com o que foi prioridade no início dos tempos. “Na cultura guarani, se fala em Nhanderu Tenonde, nosso pai primeiro, nosso pai divino. Dizemos que ele gerou o planeta do seu coração e, quando ele fez isso, a primeira estrutura que ele criou foi a natureza. Só depois, criou o ser humano. Então, a gente tem que respeitar a natureza. Tirar só o suficiente, pegar só quando for necessário, evitar cortar, quebrar e queimar quando não é necessário e, se for necessário, fazer isso com respeito e responsabilidade. Devemos cuidar daquele que te cuida e daquele que te mantém”, explica a guarani.
“O que eu sinto hoje é que o Teko Porã, de uma forma profunda, só existe na morada sagrada e, aqui nesse planeta, o máximo que a gente pode fazer é equilibrar a nossa deficiência de sentimentos humanos, sempre equacionar, sempre se lembrar, se forçar a lembrar de quem somos, de que não precisamos de tantas roupas, de tantos sapatos, de tantas coisas”, afirma ela.
Questionada sobre a aplicação do termo na educação, a pedagoga formada na USP trouxe um direcionamento aos docentes engajados na matéria. “O Teko Porã aplicado na educação do juruá seria no sentido de contar a verdadeira história do Brasil. Mostrar que ainda existem mais de 200 línguas originárias desse território, e buscar mostrar como vivem essas comunidades, essas pessoas. Estudar a história desse povo e a relação que esse povo tem com a natureza”, explica. “Chamar o juruá a se tornar selvagem, não no sentido pejorativo da palavra, mas no sentido de ter uma cultura de respeitar a natureza, de lidar com a terra, de ter só o suficiente”, completa.
Em Parelheiros, Jerá é integrante de uma equipe chamada de Conselho Guarani. Ao Fique Bem, ela falou com carinho sobre a sua trajetória, pautada em proporcionar para a comunidade uma possibilidade nova, na qual a palavra primeira, o poder de decisão, não fosse concentrado apenas na figura de um único líder, que costuma ser homem.
“Hoje eu posso falar com muita facilidade para o juruá que sou feliz. Somos o território com mais lideranças femininas do povo guarani. E a gente poder ajudar pessoas de outros estados, de outras aldeias, é muito bom. Sou mulher, sou esposa, sou mãe, sou tia-avó, faço um trabalho de psicóloga, de sexóloga, adoro plantar, adoro cozinhar, costurar, fazer brincos, andar no mato, aprender a fazer remédio do mato”, conclui ela, enquanto terminava de aquecer um punhado de batata doce no fogo para o jantar. “A gente tem que esquentar ela primeiro na brasa, daí a gente enterra, faz fogo em cima e ela fica bem assadinha. A minha filha adora essa batata roxa!”, exclama ela, em uma última dica à nossa reportagem, antes de voltar sua atenção aos seus afazeres.