Abraçando o desconhecido, engenheira atravessa o país para se dedicar à sua paixão pela educação
Conheça a jovem Mariana Giacon, sua amiga Filó e uma história que começa no terceiro setor e passa pela rede pública de ensino do Piauí e de Pernambuco
Fala, Mestre!
Edição N.º 30, Julho de 2023
Quando a gente se acostuma com um plano, com uma rotina e com um endereço, algumas vezes, fica difícil nos imaginar fazendo qualquer outro tipo de coisa em qualquer outro lugar. Contudo, já que aqui falamos em saúde mental e emocional, nos sentimos na obrigação de reforçar que quase nada na vida é permanente. Pois é, colega professor. Isso vale para o nosso endereço, nossa carreira, e até mesmo para a presença daqueles que hoje estão do nosso lado. A impermanência é inerente à existência.
Como bem escreveu João Guimarães Rosa: “A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”. E passar por uma grande mudança exige, mais que tudo, essa coragem que muitos de nós, professores, mal sabem que têm. A história que vamos contar nesse Fala, Mestre! especial de julho é a de uma mulher que abraçou essa coragem e, mesmo com medo, se jogou no mundo. Nossa convidada fez isso agarrada a um amor que desenvolveu pela educação ainda durante sua graduação — no curso de Engenharia de Materiais, na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP).
“Eu conheci a ONG Matemática em Movimento já no primeiro semestre da faculdade e, no semestre seguinte, comecei a trabalhar voluntariamente lá. Mais tarde, comecei um estágio na área comercial de uma empresa de artigos esportivos e não demorou muito para eu perceber que era muito mais feliz trabalhando com educação. Foi nessa ONG que o bichinho da educação me mordeu”, conta Mariana Giacon. Paulistana, passou 5 anos e meio na ONG, onde trabalhou como professora de matemática, cuidou do departamento financeiro, passou pelo time administrativo, e chegou a ocupar o cargo de presidente por dois anos, sempre como voluntária.
Mariana Giacon
Pé na estrada para trabalhar em sala de aula
“Fui procurar alternativas remuneradas na área da educação e encontrei o processo seletivo do programa de desenvolvimento de lideranças do Ensina Brasil. Prestei, passei e, quando fui contar para a minha mãe, ela ficou um pouco desesperada. Afinal, o Ensina, na época, não tinha redes em São Paulo”, lembra Mariana. Neste programa, Mariana foi direcionada à cidade de Petrolina, em Pernambuco, para ser professora de matemática para estudantes do 6º ano da rede pública na escola que tinha o pior IDEB do município. Sem nunca nem mesmo ter visitado o solo pernambucano, a engenheira recém-formada pegou o seu carro, encarou a estrada e viajou sozinha, com “mala e cuia” para Petrolina, onde foi professora por dois anos.
A experiência já seria desafiadora em circunstâncias ditas como normais, mas o processo se deu em meio à pandemia. “Eu trabalhava com alunos da zona rural e muitos não tinham acesso à internet ou a um dispositivo. Lá, eu aprendi o que era ser professora da rede pública, presencialmente e remotamente”, afirma. Ainda nesse período, Mariana participou de um projeto sobre saúde mental dos professores na Arco Educação e fez um estágio na Vetor Brasil, outra organização que também atua no setor público da educação.
Filó, o símbolo de uma fase da vida
Em Petrolina, Mariana, com sua pele branca e cabelos claros, foi diversas vezes chamada de sulista, passou a morar com duas outras professoras que também eram paulistanas, e com Filó, uma boia rosa em formato de flamingo, que ganhou identidade e fez companhia para a aventura do trio. “Em um período da pandemia, as meninas estavam em São Paulo e eu fiquei sozinha na casa com a Filó. Eu dava bom dia para ela, a levei para a minha formatura… passou a ser a minha Wilson”, comenta a educadora, em uma referência direta à bola de vôlei que se tornou uma companhia para o personagem de Tom Hanks no filme Náufrago.
Mariana e sua companheira Filó.
Foi na Vetor Brasil que Mariana trabalhou após seu período na Ensina Brasil e, para isso, teve que passar por outra mudança de endereço. De professora em Petrolina, Mariana foi enviada para atuar com a secretaria de Educação de Teresina, no Piauí — e é claro que a Filó foi junto. Na época, Mariana passou a trabalhar em um programa de alfabetização na idade certa da Associação Bem Comum. “Tínhamos Sobral como modelo de inspiração, com tudo o que aconteceu no Ceará enquanto regime de colaboração”, compartilha. “Na época em que eu atuava em Petrolina, estava impactando cerca de 100 estudantes. Em Teresina, implementamos esse programa nos 224 municípios do Piauí, então o número pulou para 150 mil estudantes impactados. Escalar o meu trabalho assim foi muito importante, mas tem os dois lados”, conta.
“A experiência na sala de aula me acompanha em todas as ações na gestão de projetos. Tento fazer um balanço entre impactar diretamente, estando ali na sala de aula, e impactar estando um pouco mais afastada. Tendo consciência de que, eu estando mais afastada, tem uma outra professora que está ali na ponta. Foi interessante perceber a minha marquinha em três mil escolas, sabe? Eu gosto de pensar que a vida, como um todo, é uma grande sala de aula”, reforça ela.
Além da mudança de endereço e de escopo, Mariana teve que lidar também com o desafio de transitar da prática pedagógica para a andragogia. “Eu ensinava matemática aos alunos do Ensino Fundamental e depois tive que fazer treinamentos com diretores e coordenadores, falando sobre gestão. Eu fiz um MBA em Gestão Escolar, mas não fiz nenhum estudo específico em andragogia, então acabei me pautando muito na ideia de me colocar como público-alvo. Eu, como adulta, me interessaria por aquele assunto da forma como eu estava levando? Me fiz essa pergunta e fui aprendendo na prática”, comenta.
Uma asa rasgada e a vontade de voltar
Após quatro anos e meio morando fora de São Paulo, muitas aulas de forró, amizades estabelecidas em diferentes estados e dois anos atuando na Associação Bem Comum, Mariana começou a ter o desejo de voltar para casa. Lembra da Filó? Ela também passou por um acidente nessa mesma fase, dando a entender que Mariana já precisava encerrar esse ciclo no Nordeste do país. “A asa da Filó rasgou e eu tentei reconstituí-la, mas também recebi outros sinais de que estava na hora de mais uma mudança. O proprietário do apartamento em que eu morava no Piauí, só eu a Filó, colocou o imóvel para vender”, lembra.
“Em relação à minha carreira, eu entendi que a minha curva de aprendizado estava estagnando. Já estava com quatro anos de formada, dez anos trabalhando com educação e fui sincera com o pessoal da Bem Comum e da SEDUC”, conta. Assim, como se estivesse aguardando por ela, surgiu no caminho de Mariana uma vaga na Parceiros da Educação, em São Paulo, para trabalhar justamente com base na educação do Sobral — o que ela já fazia em Teresina.
“Fiz todo um ritual com meus amigos, simbolizando que a Filó tinha encerrado seu ciclo e que tinha ido se aventurar no Velho Chico, mas dei a boia para uma criança, irmã de uma amiga minha”, comenta. “Acertei minha vinda pra São Paulo, fiz a transição com a Bem Comum e com a equipe da SEDUC Piauí, recebi diversas homenagens e costumo dizer que não saí com as portas abertas, mas escancaradas. Coloquei minha vida dentro do carro e, sozinha, peguei a estrada de volta”, comenta Mariana.
Diferentes formas de fazer a diferença
“Eu gosto de pensar que, depois que o bichinho da educação morde a gente, a gente passa por mudanças muito grandes. E, uma vez que a gente trabalha com educação e se conecta com esse propósito, é difícil mudar de caminho, por mais que você faça coisas muito diferentes, em circunstâncias muito diferentes”, reflete. “Aos profissionais da educação de todo o país, gostaria de deixar minha mensagem de incentivo, para que continuem trabalhando conectados ao propósito e sabendo que o trabalho deles está fazendo a diferença na vida dos alunos”, encerra Mariana.
E você, já passou por transformações durante sua carreira? Já abraçou o desconhecido, mudou de área, de ares, de companhia? Conte a sua história pra gente. Nosso Instagram está aberto para receber o seu contato e adoraríamos marcar um café (mesmo que online). O importante é entender: a sua história pode inspirar ou causar identificação com alguém. Todos nós somos sujeitos a servir de exemplo e, com coragem para abraçar aquilo que amamos, podemos encorajar mais pessoas a dar um passo importante e corajoso em suas vidas. Um beijo e #FiqueBem, professor!