Conheça Val, a professora que quebrou um padrão na sua família e se tornou educadora social de rua
Valéria, que estuda a experiência do docente negro em espaços de branquitude, conta que as mulheres da sua família trabalhavam como babás ou domésticas.
Fala, Mestre!
Edição N.º 28, Maio de 2023
Quanto da sua vivência interfere na sua prática educativa? É possível separar aquela professora que entra na sala de aula e aquela que agora, em seu momento de intimidade, lê esse texto da revista Fique Bem? É possível identificar aprendizados de vida, de rua, de criação, recebidos fora dos cursos de formação, que lhe influenciam na escola? Há quem diga que, por amarmos nossa profissão, nos misturamos a ela. Mas, se bell hooks defendia que o “amor é uma ação, nunca simplesmente um sentimento”, imprimir nossa identidade na prática do educar não seria, portanto, a ação de amar?
É com mais perguntas que respostas que apresentamos hoje a educadora Valeria da Conceição Silva, de Niterói, município do Rio de Janeiro. À nossa redação, ela se apresenta como Val, uma mulher negra, de 62 anos, filha única de uma empregada doméstica viúva e que veio da roça. Em minutos, percebemos que Val é também uma professora engajada, mãe orgulhosa, apaixonada pela vida, e alguém que aprendeu a valorizar sua própria trajetória. A que custo? Em um processo constante de adoecimento e cura, equilibrando o cuidado com o outro e a retomada de si mesma.
Experiência como educadora social nas ruas
Nossa convidada veio de uma família matriarcal. Ela conta que todas as mulheres da sua família trabalhavam como lavadeiras, babás ou domésticas, destino esse que encontrou Val no início da sua jornada. “Os patrões da minha mãe se tornaram meus padrinhos de batismo. Só que eu era a ‘escravinha’ da casa, né? A relação não era de padrinhos, era só para eu fazer as coisas e tal”, comenta a professora.
Mais tarde, Val começou a trabalhar na Congregação Salesiana, e, influenciada pela igreja, começou a estudar para ser professora. Formada, atuou como professora em creche, escolas de classe média alta, em escolas populares e fez trabalho social nas ruas de Niterói. “Meu trabalho nas ruas começou como voluntária. Trabalhava na escola de manhã e, de noite, eu ia uma vez na semana encontrar as crianças na rua”, conta.
“Eram crianças cheirando cola e dormindo onde defecavam. E eu fui me apaixonando por elas. Um dia, o pessoal do projeto me convidou para trabalhar em tempo integral, ser a pessoa responsável por buscar documentação e acolher essas crianças. Eu não pensei duas vezes. Saí da escola e fiquei como educadora social de rua. Demorei dois anos para contar sobre a mudança de emprego para a minha mãe”, relata Val.
“Tenho lembranças muito fortes do que vivi nas ruas. Lembro de uma menina que, questionada sobre sair das ruas e voltar para casa, me respondeu que era muito mais fácil para ela odiar o PM ou os moleques da rua que abusavam sexualmente dela, do que ter que odiar o pai que fazia a mesma coisa. Imagina para mim, com uns 30, ouvir isso de uma menina de 12 anos”, comenta a educadora. “Muitas crianças eram assassinadas e eu tinha que procurar o corpo delas no IML. Isso acabava comigo”, lembra.
De “militonta” a pós-graduada com ótimas referências
Val conta que saiu das ruas para atuar em escolas populares e teve seu tempo de “militonta”. “Sabe quando você está militando muito tonta sem saber bem o que está fazendo? Foi assim que eu comecei”, comenta. Depois, atuou em escolas de classe média alta e sentiu o racismo na pele, por ser a única professora negra da escola, compartilhando fenótipo apenas com pessoas que atuavam nos serviços de limpeza e segurança da instituição. Hoje, nossa professora convidada está terminando sua pós-graduação na área, estuda a experiência do docente negro em espaços de branquitude, e tem referências de peso em sua fala, desde bell hooks, Conceição Evaristo, Maria Carolina de Jesus e Lélia González.
“Ano passado eu saí da escola para focar no TCC da minha pós-graduação”, conta. “Hoje eu tenho um ótimo relacionamento com os pais das crianças, meus ex-alunos e tudo o mais, mas eu sofri muito e, no ano passado, se o SEE Learning não aparecesse, eu não sei, eu não teria conseguido nem terminar pós e nem ter ficado no trabalho. Porque eu não estava cuidando de mim, sabe?”, revela ela. Val agora segue curada e pronta para falar de suas cicatrizes de forma acadêmica, escrevendo sobre sua vivência.
“Existe uma subjetividade da pessoa negra que só quem é negro pode entender. Quando a gente trabalha a filosofia Ubuntu, a gente trabalha essa subjetividade também. A gente traz essa questão da igualdade, do tratamento, da compaixão… mas as dores que a criança negra sente, nem todo professor consegue perceber”, comenta. “Falo sobre isso no meu TCC, aos 62 anos. Eu tive muita dificuldade para escrever, porque eu estava escrevendo as minhas dores. É muita história para contar! Mas agora eu estou bem e curada, pronta para contar essa história para todo mundo — e estou pensando no meu mestrado”, encerra Val.