Gina Vieira Ponte, uma professora negra e periférica que trouxe a pesquisa de gênero pro chão da escola
Fala, Mestre!
Edição N.º 26, Março de 2023
Quem acompanha o mundo da educação e se interessa pelas iniciativas brasileiras que buscam promover uma educação antissexista, pode já ter ouvido falar sobre a professora Gina Vieira Ponte. Expoente da educação para diversidade no Distrito Federal, Gina foi colunista da revista Fique Bem durante o ano de 2021. Criadora do projeto Mulheres Inspiradoras, Gina transformou um projeto pedagógico em uma política pública, que trabalha direitos humanos, com um recorte de gênero e raça, sob uma perspectiva decolonial. Lançado em 2014, quando pouco se falava em trabalhar gênero na sala de aula, o Mulheres Inspiradoras deu tão certo que conquistou diversos prêmios nacionais e internacionais. Gina, por sua vez, se tornou uma professora renomada, convidada para mesas e eventos voltados ao tema. Dito tudo isso, será que já dá para imaginar como ela é?
“A primeira impressão que todo mundo tem quando olha pra mim é que eu sou uma pesquisadora de gênero. ‘Ela é uma feministona, ela veio do movimento negro’, pensam. E a minha trajetória não passa por esses espaços, né?”, afirma a professora. Filha de doméstica e de pedreiro, Gina nasceu na Ceilândia, periferia de Brasília, e, antes de ser reconhecida pelo seu trabalho com o Mulheres Inspiradoras, não teve acesso às discussões de gênero que — quando chegavam às mulheres negras, se limitavam àquelas que estavam na militância ou em círculos acadêmicos exclusivos.
“O projeto foi criado por uma mulher negra que teve esse corpo todo atravessado por todas as violências que você pode imaginar. Então, eu faço questão de dizer que eu não era pesquisadora de gênero, mas eu tinha um corpo feminino que conhecia as dores de ser mulher”, compartilha. “Esse era um assunto que se via muito na academia e em determinados espaços como movimentos sociais. Mas isso não chegava ao chão da escola”.
Fruto de um longo processo
Apesar de ter começado no ano de 2014, o projeto foi gestado por muito tempo. Segundo Gina, foi em 2003 que as primeiras ideias vieram à mente. “Eu queria ser uma professora que, a partir do meu fazer pedagógico, provocasse os estudantes a quererem aprender”, comenta. Também em 2003, Gina viu sua mãe ser diagnosticada com um câncer em outubro e falecer em novembro. “Quando a minha mãe morreu, eu disse para mim mesma: um pedaço de mim foi embora. Embora eu tenha dito pra ela muitas vezes o quanto ela era importante, o quanto ela tinha feito diferença pra mim, parecia que era pouco”, desabafa a professora.
“Eu queria que os meu alunos pudessem ter a chance de refletir sobre as mulheres extraordinárias que faziam parte da vida deles. Então, pra mim, foi muito marcante receber o depoimento dos meu alunos, depois de acessarem a história dessas mulheres. Eles ampliaram o olhar, para as próprias mães, avós e bisavós. Eles chegavam pra mim e diziam: ‘Nossa, professora! Depois desse projeto, eu percebi que a minha mãe é muito mais inspiradora do que eu imaginava’”, afirma orgulhosa. Orgulho esse que é um reflexo do sentimento de tantas e tantas mulheres impactadas pelo projeto. “Lembro do depoimento de uma avó, que recebeu o convite para participar do projeto, e perguntou à criança: ‘Mas eu lá sou uma mulher inspiradora?’. Depois do projeto, ela disse: ‘Agora, eu reavaliei a minha vida e eu sei: eu sou uma mulher inspiradora, sim’”.
Recado de mãe e aprendizado para a vida
Sobre o projeto, Gina explica com suas próprias palavras: “O Mulheres Inspiradoras, primeiro, é sobre uma professora apaixonada por educação que, em algum momento, disse não para essa escola autoritária que aí está. Segundo, é um projeto profundamente comprometido com as aprendizagens numa perspectiva de educação integral. Terceiro, o projeto, por estar comprometido com a educação integral, o Mulheres Inspiradoras rechaça essa perspectiva empobrecida, aligerada, que reduz a educação à transmissão de conteúdo e reivindica uma educação que forma pensamento crítico, que promove autoconhecimento, que me permite relacionar com o território onde a escola está aterrissada”, define.
A professora conta ainda que a gota d’água para o nascimento do programa Mulheres Inspiradoras foi quando, ao ver um vídeo de uma aluna de 13 anos dançando de forma hipersexualizada, Gina se lembrou de quando era criança e sonhava em ser chacrete. “Isso porque a cultura repete o tempo todo: esse é o lugar possível pra vocês. Mas, ao longo da minha trajetória, eu fui buscando ocupar outro lugar, em função de movimentos inspiracionais, como o da minha professora Creuza e da minha mãe, que repetia à exaustão: ‘Minha filha, não dependa de homem pra nada. Vá estudar. Quando disserem que você não cabe num lugar é pra lá que você vai’”, conclui.