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Professora com dislexia traz novo olhar à alfabetização

Fala, Mestre!

Edição N.º 22 - Novembro de 2022

“Quando eu era bem pequena, e via as crianças chegando da escola, via tanta alegria! Logo, eu pensava que também queria ir pra escola. Quando cheguei à escola, percebi que a alegria das crianças na hora da saída era por estarem indo embora daquele lugar”. A frase é da nossa convidada do mês para o Fala, Mestre! da revista Fique Bem. Mas fica a reflexão: a sua sala de aula é uma sala que deixa os estudantes felizes por estarem lá ou eles só ficam felizes quando a aula chega ao fim?


Deise Raquel da Silva mora em Viamão, município próximo a Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Alfabetizadora, Deise se orgulha em dizer que seus alunos se divertem muito na sua aula. Isso acontece porque a professora está sempre inventando uma nova maneira de dar aula, ou melhor, de aprender com os seus alunos. “Eu não tenho 27 alunos, 27 pessoas me têm. São 27 maneiras diferentes de ensinar, de dar uma aula. Minha coordenadora sabe que eu sou disléxica. Que eu preciso passar por outras coisas para estar ali todo dia, mas a aula quem faz é eles, os alunos”, diz.




Exatamente. Deise é uma professora alfabetizadora que carrega consigo a dislexia, uma condição genética que dificulta o aprendizado e a realização da leitura e da escrita. A infância da nossa professora convidada e até mesmo os primeiros anos da sua fase adulta foram bastante desafiadores - até porque ela não sabia que possuía tal condição. Porém, hoje, anos depois de ser diagnosticada, Deise diz que suas aulas são fantásticas, porque ela aprende junto aos alunos, todos os dias. Afinal, Deise diz que tem o “dom da dislexia”, que é a possibilidade de ler o mundo de outras maneiras, como se resgatasse o encantamento da infância diariamente.

Fingindo ler para o pai

Deise contou toda a sua história para a redação da revista Fique Bem. Aliás, esquecemos de avisar: ela também é contadora de histórias! O começo da sua trajetória nessa profissão coincide com o início da percepção sobre o que mais tarde seria o diagnóstico da dislexia. (A história é emocionante).

Deise chegou à terceira série do ensino fundamental sem saber ler. Seu pai, que gostava de estimular a sua leitura, não sabia disso. Com frequência, ele levava livros para casa e, a cada dia, dava um livro novo a Deise, pedindo para que ela lesse enquanto ele fazia a barba para ir ao trabalho. “E eu ia dizer para o meu pai que eu não sabia ler? Jamais! Eu inventava histórias. E ele fazia a barba enquanto eu lia. Ele olhava pra cima, e sorria. E eu pensava: fiz o meu pai feliz. Mas ele não sabia que eu não sabia ler”, conta.

Quando a pequena Deise tinha de 10 para 11 anos de idade, a mentira teve fim. Sua professora chamou o seu pai à escola, e disse que Deise não sabia ler. “Ele disse que não, ‘todo o dia ela lê pra mim’” e foi no choro de Deise que seu pai descobriu a verdade. Na época, nem o pai, nem a professora e nem mesmo “a menina que não sabia ler” sabiam por que ela não aprendia como as outras crianças. “Meu pai chegou em casa e pegou os livros, para ter certeza que aquelas histórias, por mim inventadas, não estavam ali. E ele me disse: ‘filha, por que você não está lendo?’. Eu chorava, porque queria muito ler. Até hoje, inclusive, sou apaixonada em ouvir pessoas lendo”, afirma.

Qual o papel do professor?

O tempo passou e Deise continuou com dificuldades na leitura, mas nunca foi apoiada ou ouvida por qualquer professor. Cursou o EJA e pensou em ser chef de cozinha. No final das contas, Deise abriu a possibilidade de entrar em outros cursos e acabou se matriculando no curso de pedagogia, com a ajuda de uma amiga jornalista. Por um bom tempo, o ex-marido de Deise era quem lia para ela, ajudando-a em tarefas que exigiam a leitura.

“Eu fui péssima em tudo na prova, mas a pergunta na redação era qual era o papel do professor. Eu pensei nos professores que eu tive. E eu escrevi com todo o meu coração. Pensei que iria passar. E passei”, diz ela. Deise conta ainda que queria que o pai estivesse vivo para vê-la onde chegou, entrando em uma faculdade e estudando para ser professora. 

“Na faculdade, um professor me ouviu contando uma história. E ele disse: ‘Você é professora?’ Eu disse que não. Ele disse: ‘A minha escola está precisando muito de um professor. Acho que você deve ir lá preencher uma ficha, mas antes eu vou te dar esse livro e você deve estudá-lo’. Eu não ia dizer a ele que eu não sabia ler, né? Uma professora que não sabe ler não iria fazer sentido”, afirma.

No dia da entrevista, Deise não tinha lido o livro, mas foi mesmo assim. “Meu ex-marido havia dito: ‘Eu não vou ler, não tenho tempo’. Na entrevista, perguntaram assim: ‘Você recebeu o livro?’ Eu disse que recebi. ‘Você chegou a ler?’ Eu disse ‘é interessante’. ‘Tá, então conta a sua história’. Quando ela disse isso, eu pensei ‘essa sala de aula é pra mim’”, lembra.

Deise acabou contratada e, em uma turma de 22 alunos, sua primeira, 18 terminaram o ano letivo sabendo ler. Uma vitória para cada um dos estudantes e para a professora que os acompanhou. 

“A bibliotecária da escola não ia com a minha cara, porque eu não saía de lá. Se chegasse um aluno pra mim dizendo como se escreve determinada palavra, eu dizia: como você acha que é? Eu dava o quadro a eles, nem sentava lá na frente. Aí, ele escrevia do jeito que achava que era. Daí, vinha um outro achando que era de outra forma. E eu sem saber que forma era, né?”, lembra a professora. “Eu acho interessante que, pras crianças, elas têm mais de uma maneira de escrever uma palavra. E eu falava: ‘Tudo bem, nós temos dicionários, vamos ver como se escreve’. Íamos na biblioteca e procurávamos juntos. Eu também estava aprendendo aquela palavra, fazíamos construções, estruturas, inventávamos música para aquela história. E foi sempre assim.

O diagnóstico de dislexia

“Deise, esse aluno é disléxico. As palavras estão todas juntas”, disse a professora colega. “Quando ela falou isso, ela saiu da sala e uma luz se acendeu na minha cabeça. Procurei dislexia no Google e, chorando, liguei para o meu marido e disse: eu sou disléxica. Eu não estou disléxica, eu sou isso aqui”. Foi assim que a professora começou um atendimento com um psicopedagogo. 

“Eu atendo casos de advogados disléxicos, médicos disléxicos… mas professor disléxico não existe”, disse o profissional. “Eu não existo, eu sou uma farsa”, pensou Deise, que saiu de lá chorando novamente. “Chorei a noite toda. Pensei em tudo que eu passei pra chegar até ali, lembrando do meu pai e das dificuldades dele. Hoje eu sei que ele também era disléxico. Eu pego umas cartas dele e tem erros ortográficos, mas eu consigo entender a mensagem dele. Escrevia até o nome errado”, afirma.

Decidida a contar a verdade para a sua coordenadora, Deise chegou no dia seguinte com o coração apertado e lhe disse tudo o que pensava ter descoberto até então. Disse que era disléxica, que não existia professora disléxica, que era uma fraude. 

A resposta da coordenadora foi uma porta aberta: “E daí? Você não é uma farsa. Você é uma professora que alfabetiza e já alfabetizou centenas de alunos. Agora vai limpar as lágrimas e vai dar aula. Ah, e vai dizer pra turminha que tá tudo bem, que existem professores diferentes, pessoas diferentes. E se esse psicopedagogo disse que não existe, a partir de hoje existe”. 

Só mais tarde, no decorrer dos seus estudos, Deise descobriu que trabalhava com modelo fônico de alfabetização, baseado em sons, com seus alunos. Desde então, ela entendeu o que era a dislexia e se aceitou como uma professora disléxica.

Método fônico e uma criatividade sem fim

“Às vezes um pai vem e me pergunta como eu ensinei o filho dele a ler. Eu sempre digo que não ensinei nada. Que eu só disse a ele: ‘Vamos juntos daqui em diante’. E lá se vão anos e anos alfabetizando crianças. As escolas sabem do diagnóstico, têm o laudo, e solicitam que eu alfabetize. ‘Não sabe ler, vai lá com a professora Deise, vai na sala dela que vai dar certo’. E dá”, afirma a professora.

“Hoje, eu sou a professora louca. A gente deita no chão e ouve os pássaros. Pensa em como escrever os sons dos pássaros. Eu procuro me aproximar ao máximo da criança. Chego a sentar no lugar deles na sala de aula, para saber como ele está vendo a sala. Eu procuro me aproximar ao máximo, mas não me infantilizando, não fingindo que eu sou uma criança, mas eu peço licença para voltar à infância. A dislexia me proporciona isso e é ótimo. Eu quero a criança saindo da minha aula alegre, radiante, feliz por ter vivido aquilo”, conta Deise.

“Tem crianças que vão pra aula de reforço para alfabetizar, e eu vejo algumas Deises. Entendo que eu não tenho que forçar ela a ler, ela vai ler. Mas eu vejo as dores, dores que eu também tive, mas cada uma tem seu próprio jeito. Então eu penso: ‘Se ela chegou até mim, ainda dá tempo de curar isso’. A pessoa escreveu repetindo letras, mas eu sei o que ela quis falar, então a gente entende o processo de aprendizado. Essa criatividade de ler o mundo de outro jeito é a dislexia”, afirma ela.

“Eu não digo que eu não sei ler. Eu sei ler, mas de um outro jeito. E a criança também é assim. Mas eu vejo que muitas escolas não estão preparadas para receber tanto as crianças disléxicas, quanto as não disléxicas”, avalia. “Eu precisei ser ouvida antes de ouvir e as minhas professoras nunca tiveram tempo para me ouvir. Então, a primeira sugestão que eu deixo aos demais professores é a de sempre ouvir o aluno. De todas as formas, tá? As palavras, as expressões, o comportamento das pernas, das mãos… ele está confortável? Ele entende o que está escrito, ou ele só copia? A gente pode ouvir os outros de diversas maneiras. Isso, o curso de pedagogia não ensina”, finaliza.

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