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Educadora conta como resgatou crianças do crime com ajuda da Neurolinguística no RS

Fala, Mestre!

Edição N.º 21 - Outubro de 2022

"Segunda feira. A professora entra na sala de aula e ouve Alex Sandro chamá-la: “Profe, profe ontem me escapei com vida!”. Ela deposita seus materiais em sua mesa sabendo que a escuta seria longa. O garoto de 8 anos, a cara mais simpática, matreira e corajosa do mundo, participara no domingo, de pequenos furtos, com um grupo. Detalhando cada movimento e estratégias, ele relata as artimanhas de como, escondido atrás de um muro, escapou dos tiros de revólver 38 desferidos pelo dono do galinheiro onde houve a tentativa de roubo. Rindo dos feitos, reforça que a bala passou zunindo pelo ombro. Seus colegas de turma, todos habitantes do mesmo bairro, habituados à cultura das notícias disparadas como rastilho de pólvora entre a vizinhança, foram se aproximando do colega, apimentando o relato já que suspeitavam que o colega tivesse sido alvejado. Quem conta um conto, aumenta um ponto, era o resultado das hipóteses entre vizinhos, e assim, novos detalhes já haviam sido acrescentados ao feito da gurizada".

O parágrafo acima é parte de um artigo produzido pela nossa convidada do mês, a educadora Armgard Lutz. Com 55 anos de experiência na docência, Armgard — que gentilmente aceitou conversar com a redação da Revista Fique Bem, se apresentando sob o apelido de “Gard” — acumula vivências memoráveis envolvendo estudantes e colegas de atuação. A história que começa esse texto é uma história real, relatada pela professora em um artigo, no qual ela conta a experiência que teve, assumindo o desafio da alfabetização de um grupo de alunos multirepetentes, integrantes de uma gangue de assaltantes no Rio Grande do Sul. 




“Era uma turma com 3 anos de repetência e eles haviam sido excluídos de várias escolas, as quais diziam que eles nunca iriam aprender, nunca iriam se alfabetizar”, conta Armgard à nossa revista. “Eu era supervisora de uma escola e recomendei muito para que uma professora tivesse um carinho especial com o aprendizado deles. Cinco professoras passaram pelo grupo e não conseguiram nada. Daí, eu decidi assumir a alfabetização das crianças, me baseando na Psico/Neurolinguística”, afirma.


“Nessa turma, tinha o Alex Sandro, de alcunha de “Beleco”. Ele contava que passava pelas janelas basculantes, entrava nas casas e abria a porta para os assaltantes entrarem. Com a abordagem que tive na sala de aula, o estudante começou a ir às aulas diariamente, coisa que ele não tinha o costume. Em um determinado dia, ele chegou na sala e disse: ‘Ninguém mais me chama de Beleco, eu sou o Alex Sandro. Dali em diante, ele abandonou o grupo dos assaltantes”, conta com orgulho a educadora.

Segundo ela, o método que fez a turma continuar na escola foi a sua inovação em sala de aula. Todos os dias, a professora fazia algo diferente e inusitado, criando a curiosidade dos alunos sobre o dia de amanhã e uma cumplicidade que favoreceu o andamento do processo pedagógico. 

“Eu me desdobrei muito para criar uma outra perspectiva em relação ao que era escola, ao que era aprender”, conta a professora, que guardou todo o material de experiência com essa turma de alfabetização, mas perdeu os registros em um acidente. “Meu marido botou fora a caixa com tudo guardado! Eu tinha um registro do que cada criança falava, e fiquei um ano sofrendo a dor dessa perda. Para superar, produzi um artigo e publiquei”, afirma ela.

Motivada pelo interesse no outro

Armgard é descendente de alemães. Na sua infância, o alemão era a língua falada dentro de casa. Quando estava na primeira série do fundamental, no entanto, a pequena Gard não foi muito bem na escola, pois não conhecia muito bem a língua portuguesa. Foi aí — e com a decisão de Getúlio Vargas de impedir o ensino de línguas estrangeiras para menores de 14 anos, em 1938, com uma restrição ainda maior ao alemão, italiano e japonês — que Armgard começou a ter a língua portuguesa falada entre seus familiares.




Hoje, aos 73 anos de idade, a educadora conta que perdeu a fluência da língua alemã. Já adulta, chegou a revisitar o vocabulário estrangeiro, mas diz que “não deu liga”. Mãe de três filhas — uma falecida — , ela conta que, como reflexo da educação nos padrões alemães que recebeu quando pequena, sempre foi uma pessoa perfeccionista e ansiosa, características que foram flexibilizadas no decorrer dos anos. Especialmente, diante dos anos de trabalho que tem com a educação.


“Na época que eu comecei a trabalhar na docência da educação infantil, eu participei de duas experiências que mobilizaram toda a minha vida e a minha curiosidade. Na primeira, uma supervisora de uma escola particular havia descoberto o livro ‘Ensine seu filho a ler com dois anos’, que era de uma médica, pediatra, algo assim. Então ela me desafiou a fazer o experimento com crianças de quatro anos, e essa curiosidade me mobilizou muito”, lembra a educadora.

“Ao mesmo tempo, ingressei em uma proposta muito inovadora que era da criação de uma escola experimental dentro de uma universidade. O projeto se chamava Instituto Psicopedagógico Infantil e o diretor era da argentina, um psicólogo”, continua. “Ele mexeu demais com os nossos paradigmas e com as nossas convicções, porque ele dizia que, mais que contar histórias, era vivenciar experiências. Imagine: estávamos nos anos de 1968, 1970, e já ensinávamos espanhol na educação infantil, o que era muito inédito. A arte, assim como o cuidado com o professor, era um ponto chave também”, reflete.

“Quando a gente pensa no professor, a gente pensa que o professor é educado. Mas esse psicólogo começou a nos apontar aspectos até culturais brasileiros que indicavam a nossa indelicadeza uns com os outros”, explica. “Eu acho que o que aconteceu no início da minha carreira, impactou toda a minha carreira”, conclui.

Generalista e estudiosa

Formada em Letras pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí) e em Pedagogia, com habilitação em Supervisão Escolar, na mesma universidade, Armgard nunca deixou de estudar e de se atualizar na área da docência. Com mestrado e doutorado em Educação, ela tem ainda uma especialização em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mesmo assim, se considera generalista, pois já atuou em diversas áreas e posições da educação.

“Se eu não fosse generalista, talvez eu não estivesse até hoje na ativa. Eu fiquei 36 anos em uma instituição particular, mas chegou um tempo em que as contradições acabam se tornando agressivas para a vida da gente. Daí, eu fiz um concurso para o lugar onde estou e é uma universidade pública estadual. É uma grande satisfação atender a pessoas que tem baixo poder aquisitivo, e vontade de estudar e alavancar as suas vidas. Quando elas se formam, muita coisa muda na vida delas, então eu tenho um prazer enorme de me dedicar a essas pessoas”, conta a professora.

“O meu lugar é na sala de aula, que eu amo! Mas veja que interessante isso: nada é isolado. A interdependência é intensa na educação. Veja, eu fiz uma formação em supervisão, que significa coordenar pedagogicamente uma escola. E o que a gente faz dentro da sala de aula, não deixa de ser uma coordenação pedagógica bem intensa, bem próxima”, explica. 

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